Reflexões Sobre a Justiça Imputada de Cristo – John Wesley
  1. Foi publicado recentemente um folheto sobre a justiça imputada de Cristo que leva o meu nome.

    Isto me levou a explicar o que penso a respeito deste tema, coisa que farei com a maior clareza possível. Mas não discutirei com nenhuma pessoa por pensar ou falar de forma diferente; não culpo a ninguém por usar expressões que considera pertencentes à Escritura. Se alguém se irar comigo porque eu não as uso, ao menos não com tanta frequência como ele, só posso ter compaixão e lhe desejar mais desse sentimento que houve em Cristo[1].

  2. “A justiça de Cristo” é uma expressão que não encontro na Bíblia. “A justiça de Deus” é sim uma expressão que encontro ali. Creio que se refere, primeiramente, a misericórdia de Deus, como lemos em 2 Pedro 1.1: “Aos que haveis alcançado, pela justiça de nosso Deus, uma fé igualmente preciosa como a nossa”. Como poderíamos supor que aqui a justiça de Deus é algo mais ou algo menos que a sua misericórdia? “Minha boca relatará a tua justiça e teus atos de salvação”, a tua misericórdia ao me salvar. “Farei menção da tua justiça, da tua somente. Tua justiça, Deus, que chega até as alturas”[2]. Neste texto a “justiça de Deus” se encontra expressamente mencionada, mas não serei eu quem vai dizer que também se refere a justiça ou a misericórdia do Filho, não mais do que se refere a do Espírito Santo.
  3. Creio que esta expressão se refere, em segundo lugar, ao método que Deus usa para justificar os pecadores. Assim, explica a Epístola aos Romanos: “Não me envergonho do evangelho de Cristo, pois no evangelho a justiça de Deus”, o modo como justifica os pecadores, “se revela”[3]. “Agora se manifestou a justiça de Deus: a justiça de Deus por meio da fé” (a menos que aqui justiça também signifique misericórdia), “em Cristo Jesus a quem Deus pôs como propiciação por meio da fé em seu sangue, para manifestar a sua justiça por ter tolerado os pecados do passado, a fim de que ele seja o justo e o que justifica aquele que tem fé em Jesus”[4]. “Ignorando” o povo de Israel “a justiça de Deus”, (o modo como se justifica os pecadores), “e procurando estabelecer a sua própria”, (o seu próprio método oposto ao de Deus), “não se sujeitaram a justiça de Deus”[5].
  4. Talvez haja um significado particular neste texto de Coríntios: “Aquele que não conheceu pecado, por nós o fez pecado, para que nós sejamos justiça de Deus em” (ou por meio de) “ele”[6], para que sejamos justificados e santificados, e possamos receber a benção de Deus através dele.
  5. Por acaso não é esse o sentido do texto de Filipenses: “Para ganhar a Cristo e ser achado nele”, implantado na videira verdadeira, “não tendo a minha própria justiça” (um método para me justificar que eu mesmo tenha escolhido) “que é baseada na Lei, mas na justiça que procede de Deus” (o modelo de justificação que Deus escolheu) “e que é baseada na fé”[7].
  6. Mas não dissemos que Cristo é “a nossa justiça”? Sim, ele é: “Este será o teu nome com que te chamarão: Senhor, justiça nossa”[8]. Este é o significado claro e indiscutível deste texto: Ele fará conforme o seu nome, o único que pode nos comprar, a única Causa digna; a nossa santificação e a nossa justificação.
  7. Estreitamente relacionado com isto, encontramos outro texto: “Cristo Jesus nos tem feito por Deus sabedoria, justificação, santificação e redenção[9]. O que isso prova? Pois o que nos tem feito justiça, ou justificação, da mesma maneira em que nos tem feito santificação. Em que sentido? No sentido de que ele é o único Autor de uma e outra; ele é o Autor da nossa salvação.
  8. O texto de Romanos implica algo a mais. Não implica também que “Cristo é o fim da Lei”? Não só da dispensação mosaica, mas da lei das obras, a qual foi dada a Adão quando ainda vivia em perfeição, “para justiça de todo aquele que crê”[10] a fim de que todo aquele que crer nele, ainda que não tenha cumprido, e nem pode cumprir essa lei, possa ser considerado justo e justificado.
  9. Neste mesmo sentido, as Escrituras muitas vezes falam que “a fé é imputada por justiça”. Por exemplo, o livro de Gênesis diz que “Abraão creu no Senhor e isto lhe foi imputado por justiça”[11]. Este texto se repete, praticamente sem variantes, uma e outra vez ao longo do Novo Testamento: “Ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é imputada por justiça”[12]. Assim foi como “Noé foi feito herdeiro da justiça”, isto é, a justificação, “que vem pela fé”[13]. Assim também, enquanto que os judeus não puderam a alcançar, “os gentios alcançaram a justiça, isto é, a justiça que é pela fé”[14]. Entretanto, a expressão “justiça de Cristo” não aparece em nenhum destes textos.
  10. Aparentemente, nos textos que seguem, “justiça” equivale a “justificação”. “Se pela Lei viesse à justiça, então Cristo morreu em vão”[15]. “Se a Lei dada pudesse vivificar”, dar vida espiritual ou direito a vida eterna, “a justiça seria verdadeiramente pela Lei”[16]. Há aqueles que pensam que neste versículo, a justiça inclui também a santificação, a qual parece corroborar este texto de Apocalipse: “O linho fino significa as ações justas dos santos”[17].
  11. “Mas quando São Paulo diz: ‘Pela justiça de um’, (no versículo seguinte fala da ‘obediência de um’, a saber, a sua ‘obediência até a morte’, visto que morreu por nós) ‘veio a todos os homens a justificação que produz vida’[18], não está se referindo a justiça de Cristo”?

Sem dúvidas. Todavia, não é esse o ponto. Não estamos discutindo o significado, mas de que modo se expressa. Todos nós estamos de acordo quanto ao sentido, mas divergimos quanto a expressão “justiça atribuída a Cristo”. Pela minha parte, sigo pensando que não posso insistir nela, nem pedir para as pessoas que a usem porque não se pode encontrá-la na Bíblia. Se alguém a encontrou, seguramente tem melhor visão que eu e lhe agradeceria que me indicasse onde está.

  1. Minha ideia é que se damos à expressão “justiça de Cristo” um sentido que não está na Escritura, não há dúvidas de que estamos confundindo a escuridão com a luz. Se, pelo contrário, damos o mesmo sentido que lhe dá as Escrituras, só que expressado de modo diferente, por que preferir esta expressão à que a Bíblia usa? Não seria como corrigir o Espírito Santo em sua sabedoria, e confrontar o perfeito conhecimento de Deus com o nosso próprio conhecimento?
  2. Pessoalmente, me sinto absolutamente livre para usar a expressão devido ao terrível abuso que com demasiada frequência se faz dela. Outra razão é que os antinomistas a usam até o dia de hoje para justificar as mais escandalosas abominações. É motivo de profundo pesar ver como pessoas que amam a santidade, que a pregam e buscam alcança-la, chegam a crer que honram a Cristo ao mesmo tempo em que aprovam o comportamento de pessoas que continuamente lhe convertem em “ministro do pecado”[19] e, se amparando nessa justiça imputada, alcançam tal grau de iniquidade e injustiça que não tem paralelo nem sequer no mundo pagão.
  3. Não creem que este modo de expressão nos leva a fazer de Cristo “ministro do pecado”[20]? Visto que se eu me aproprio da obediência de Cristo no instante em que me faço crente (tal como posso supor esse tipo de expressões), acaso há algo a mais que possa agregar? Pode a minha própria obediência a Deus agregar algo à perfeita obediência de Cristo? Segundo este esquema de pensamento, não se encontrariam o santo e o ímpio exatamente na mesma situação?
  4. Para concluir, não encontro melhor forma de expressar o meu pensamento que através das palavras de um bom homem como o é o Sr. Hervey: “Se ainda desconhecendo esta classe de detalhes, podemos estar a salvos e a sua herança assegurada, por que os intrigar com terminologia desnecessária? Não somos muito entusiastas a respeito da utilização ou do valor de determinadas expressões. Unicamente devemos nos preocupar por que as pessoas se humilham aos pés do nosso Redentor como pecadores arrependidos e confiem nele como beneficiários dos seus preciosos méritos. Se assim fizerem, estarão sem dúvida alguma no caminho a uma bendita imortalidade”.[21]

John Wesley
Dublin, 5 de Abril de 1762

imagesJohn Wesley (Epworth, Inglaterra, 17 de junho de 1703 — Londres, 2 de março de 1791) foi um clérigo anglicano e teólogo cristão britânico, líder precursor do movimento metodista e, ao lado de William Booth, um dos dois maiores avivacionistas da Grã-Bretanha. John Wesley viveu na Inglaterra no século XVIII, uma sociedade conturbada pela Revolução Industrial, onde crescia muito o número de desempregados. A Inglaterra estava cheia de mendigos itinerantes, políticos corruptos, vícios e violência generalizada. O cristianismo, em todas as suas denominações, estava definhando. Ao invés de influenciar, o cristianismo estava sendo influenciado, de maneira alarmante, pela apatia religiosa e pela degeneração moral. Dentre aqueles que não se conformavam com esse estado paralisante da religião cristã, sobressaiu-se John Wesley. Primeiro, durante o tempo de estudante na Universidade de Oxford, depois como líder no meio do povo.

 

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