Um Menino nos Nasceu – Martinho Lutero [ I ]

Sermão pregado em 26 de dezembro de 1531 Pelo Reformador, para o dia de Santo Estevão, Mártir.

O povo que andava em trevas viu uma grande luz; os que moravam na terra da sombra da morte, a luz resplandeceu sobre eles. Multiplicaste os povos e aumentaste a alegria.

Alegrar-se-ão diante de ti como se alegram na ceifa, como se gozam quando repartem os despojos. Porque tu quebraste seu pesado jugo, e a vara de seu ombro, e o cetro de seu opressor, como no dia de Midiã. Porque todo calçado que leva o guerreiro no tumulto da batalha, e todo manto revolvido em sangue, serão queimados, pasto do fogo. Porque um menino nos nasceu, um filho nos é dado, o principado está sobre o seu ombro; e se chamará seu nome Admirável, Conselheiro, Deus forte, Pai forte, Príncipe da paz. (Isaías 9:2-6)

Introdução: Os pastores de Belém: exemplos de uma fé incondicional, e exemplos de como Deus escolhe os humildes para envergonhar os grandes.

Contam-se maravilhas sobre o silêncio que os turcos guardam em seus templos. No evangelho que se lê no dia de hoje aparece o bonito exemplo da fé dos santos pastores, que depois de ouvirem a pregação dos anjos, imediatamente se puseram a caminho para ver o quanto antes o que havia sucedido, e o que o Senhor lhes havia manifestado (Lucas 2:15). São, em especial, dois fatores que fazem com que essa fé seja tão exemplar. Em primeiro lugar, os pastores não se escandalizaram pelo aspecto extremamente humilde da criança. E em segundo lugar, não temem aos notáveis de Jerusalém e de Belém, que muito facilmente poderiam acusá-los de insidiosos porque queriam proclamar rei ao filho de um mendigo. Tanto o primeiro fator como o segundo são exemplos eloquentes de uma grande fé. Sem mais nem menos os pastores vão a Belém e encontram uma criancinha deitada em uma manjedoura. Quão pouco concordava este quadro com a imagem de um rei que, por acréscimo, havia de ser Redentor do mundo inteiro! Contudo os pastores não se sentem defraudados na menor coisa.

Nós pensamos de maneira distinta: ainda que nos falem nos termos mais sublimes sobre a fé e a vida eterna, apreciamos cem vezes mais os bens desta terra. Se nossa fé fosse realmente sincera nestas palavras: Cristo nasceu em Belém como Salvador nosso, e logo padeceu e morreu para nos redimir do pecado e da morte, então nosso ânimo seria outro, em nosso coração não haveria tanta sede de riquezas, não nos fatigaríamos tanto para possuir um palácio e outras coisas que o mundo estima de alto valor, senão teríamos tudo como lixo, e como objetos que fazemos uso para manutenção de nossa vida terrena. Porém o fato de que ainda permanecemos em nosso estado anterior de apego às coisas deste mundo, é sinal de que aquele nascimento não nos importa, e que das palavras do anjo nós tenhamos retido nada mais do que o som.

Os pastores, ao contrário, retém as mesmas palavras, e com tal firmeza que vêem naquela criancinha a seu Rei e Salvador, e difundem por todas partes o que lhes havia sido dito sobre a criança. Onde está, naquele estábulo de Belém, o que comumente distingue a um rei: o valente cavalo, o séquito de nobres cavalheiros? Não obstante, contra o que lhes dizem seus cinco sentidos, os pastores concluem: Este é o Rei, o Salvador, o grande gozo para todo o povo. Assim, no coração dos pastores pareceu pequeno, e nada foi grande senão apenas aquelas palavras do anjo. Tão grandes foram que a parte delas, os pastores não viram mais nada. Encheram-se delas e ficaram como embriagados, de modo que se puseram a anunciá-las em alta voz, sem perguntar o que diriam os grandes senhores em Jerusalém que mandavam no templo e no sinédrio.

Ao contrário: sem o menor sinal de medo diante das autoridades pregaram a Cristo mendigo. Na verdade palavras de verdadeiros revoltosos e hereges! Dizer que haviam visto a um anjo, e que este anjo lhes havia anunciado o nascimento de um Rei e Salvador em Belém! Se isso chegava aos ouvidos dos principais dos sacerdotes não os repreenderiam dizendo: “Vós, ignorantes pastores, não nos façais crer que em um presépio em Belém jaz um novo governante. O governo tanto espiritual como civil está aqui em Jerusalém! Vós quereis persuadir o povo de haver tido uma visão? Na verdade será que haveis sonhado?” E não teriam que dizer a si mesmos os pastores:

“Merecemos ser crucificados ou ser postos no madeiro por havermos sublevado contra as autoridades espirituais e civis?” Creio, porém que quando a notícia do ocorrido chegou aos chefes dos sacerdotes, estes responderam: “Já estamos acostumados com a estupidez da gente ignorante; era Satanás que estava no campo de Belém”, ignorando assim, para seu próprio prejuízo, a mensagem angelical.E ainda outros terão dito talvez: “ Se realmente aconteceu um fato dessa natureza, dariam a notícia a nós e não a uns pastores desconhecidos.” Também em nossos dias há pessoas que dizem: “ Se essa nova doutrina que agora se prega fosse realmente o evangelho verdadeiro, Deus o faria ser pregado pelos chefes mesmos da igreja, não por monges e sacerdotes fugitivos de algum convento.” Porém não te parece que Deus possa deixar plantados a Caifás e Anás e a todos os respeitados sacerdotes e dar a uns humildes pastores a missão de pregar o nascimento do Rei e Salvador?

Oxalá também nós seguíssemos esse exemplo dos pastores e tivéssemos por grande e importante só a palavra da fé, fazendo ouvidos surdos a todas as outras coisas! Por exemplo, quando nos dessem a absolvição, ou a santa ceia, ou quando nos pregassem um sermão, tivéssemos por lixo todo o mais e nos apegássemos a palavra só.Porém por desgraça, nossa carne,Satanás e o mundo fazem com que não desprezemos o mundanismo como deveríamos fazer,e assim nos impedem de apreciar a palavra em todo o seu valor. Por hoje não quero explicar mais sobre esse evangelho; voltemos agora as palavras de Isaías.

1. A diferença entre o reino espiritual de Cristo e os reinos deste mundo.

O profeta nos diz: “Um menino nos nasceu, um filho nos é dado.” Já ouvistes o que significam essas palavras. Esse capítulo é na verdade um capítulo de inestimável valor, em que Isaías nos descreve com palavras sumamente belas e acertadas que classe de criança é Cristo. É a criança que nos leva sobre seus ombros a ti e a mim com todos os nossos pecados, misérias e dores. E isto fez não somente quando viveu na terra, senão que segue fazendo até o dia de hoje por meio da palavra do evangelho. Com o que Isaías nos disse sobre o menino Jesus, nos ensina ao mesmo tempo a discernir corretamente entre o reino espiritual e corporal.

O reino corporal é aquele em que somos os súditos, os que têm que levar o rei a soberano, por que o mundo precisa de quem o aperte e o obrigue. O reino espiritual ao contrário é aquele em que o rei mesmo nos leva. Há, pois, uma grandíssima diferença entre esses dois reinos: no reino corporal, muitos milhares de homens levam uma só cabeça, um soberano; mas no reino espiritual, uma só cabeça, Cristo, leva um número incontável de homens. Certamente, ele leva os pecados do mundo inteiro, como disse Isaías (53:6): “O Senhor carregou nele o pecado de todos nós”; e o mesmo afirma São João Batista (João 1:29): “Eis aqui o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo.” Lá na cruz ele levou nossos pecados, leva-os ainda hoje mediante seu Espírito de bondade, e nos faz pregar que ele é o Rei da misericórdia. Isso é uma parte da profecia.

2. A assombrosa imagem da igreja: desprezível diante do mundo, santa diante de Deus por Cristo.

Seguem agora os homens: “Admirável, Conselheiro, Deus forte. Pai eterno. Príncipe da Paz.” Com esses nomes, o profeta descreve em detalhe a índole do reino em si. Até agora havia retratado a pessoa do soberano como um rei que leva o reino sobre seus ombros. Aqueles nomes nos ensinam como está formada e que sinais particulares tem a igreja cristã. Se queres retratá-la, retrata-a como igreja que tem que ser levada e como igreja que é levada por Cristo. Esse levar, porém, por parte de Cristo, e esse “ser levado” por parte da igreja, fazem que o nome e o ofício de Cristo sejam o de Admirável, Conselheiro.

“Admirável, Conselheiro” se chama também pela obra que ele leva a cabo em sua santa igreja cristã, a qual Ele governa de tal maneira que nenhuma razão humana pode compreender ou notar que essa igreja é verdadeiramente a igreja cristã. Não estabelece para ela residência oficial, não lhe fixa modos de proceder nem ritos, não lhe outorga traços distintivos externos alguns que permitam determinar com precisão onde está a igreja, quão grande ou quão pequena é. Se quiseres achá-la, não a encontrarás em nenhum outro lugar senão sobre os ombros de Cristo. Se queres imaginá-la, tens que fechar e prescindir de todos os demais sentidos e atender exclusivamente a descrição que te dá aqui o profeta.

A igreja é, na verdade, um reino admirável, um reino que causa assombro, ou seja, um povo desprezível diante dos olhos do mundo, do diabo, e diante de si mesmo, um “opróbrio dos homens e desprezado do povo”, como diz o Salmo 22:6, uma “pedra rejeitada pelos edificadores”, como diz Mateus 21:42, porque tem um aspecto como se fosse não a esposa do Rei celestial senão do diabo. A verdadeira igreja cristã é na opinião do mundo um conjunto de hereges. Esse é o nome que a define. O inverso, os que são seguidores do diabo, esses levam o nome de “igreja”. Assim como os turcos consideram os cristãos como gente extremante insensata e diabos em pessoa, assim também os judeus e os papistas de hoje em dia não têm mais que burlas para os que constituem a igreja de Cristo. Tal é assim que a igreja não tem o aspecto, nome, imagem e semelhança de ser a igreja de Deus, senão do diabo.

Agora bem: se esse aspecto tivesse a igreja apenas diante do mundo e do diabo, seria ainda tolerável, mas o que é verdadeiramente grave é que esse mesmo aspecto nós temos diante dos nossos próprios olhos. Essa é uma arte que o diabo domina com perfeição: o apartar nossos olhos totalmente do batismo, do sacramento e da palavra de Cristo, de modo que um tortura a si mesmo com o pensamento que expressara Davi (no Salmo 31:22): “Dizia eu em minha pressa: Cortado sou diante de teus olhos”. Este é nosso distintivo: que a igreja cristã deve ter aos seus próprios olhos  e eu diante de mim mesmo uma aparência como se Cristo nunca nos houvesse conhecido como seus.

Devo saber que essa é a santa igreja cristã, e que eu sou um cristão, e sem duvidas, devo ver ao mesmo tempo que tanto a igreja como eu estamos cobertos por uma grossa capa de opróbrio do mundo que nos apelida de heréticos. Mais ainda: devo ouvir o que meu próprio coração me diz: Tu és um pecador. Estas grossas capas, o pecado, o diabo e o mundo cobrem de tal maneira a igreja e o cristão, que já não fica nada visível deles; o único que se vê é pecado e morte, o único que se ouve são as blasfêmias do mundo e do diabo. O mundo inteiro e quantos nele se orgulham de sábios, se põem contra mim, minha própria razão rompe as relações comigo; e não obstante, devo manter com todo firmeza: eu sou cristão, e com tal, justo e santo.

Portanto, a santidade da igreja e a minha santidade provém da fé. Embasam-se não em algo dentro de nós mesmos, senão exclusivamente em Cristo. Diga a igreja: “Eu sei que sou pecadora”, e confie-se jazer por inteira no cárcere do pecado e no perigo de morte. “Em mim não há mais que iniquidade, em Cristo não há mais que justiça; e se eu creio em Cristo, Sua justiça chega a ser minha justiça”. Isso excede toda razão e sabedoria humanas. Parece ser algo totalmente inaceitável. Pois todos os entendidos dizem: a justiça é certa qualidade ou santa maneira de ser no homem mesmo.

Assim como a cor branca e negra estão na parede mesma ou no pano mesmo, assim a santidade deve estar na alma mesma do homem justo. Mas então vem meu próprio coração e me diz:eu não sou assim, não sou um santo. E o mesmo me diz Satanás e o mundo. Se tenho contra mim as declarações do mundo, de Satanás e do meu próprio coração, que posso dizer? Precisamente o que diz nosso texto: que Cristo é o Admirável Conselheiro. Ele governa a sua igreja e a seus cristãos de forma admirável de modo que somos justos, sábio, limpos, fortes, cheios de vida, filhos de Deus, ainda que diante do mundo e diante seus próprios olhos pareçam todo o contrário. A que devo me ater porém para vencer a fé aparente? Ao mesmo a que se ativeram os pastores : a Palavra.

O mesmo Cristo procede de forma sumamente estranha ao que sua própria pessoa se refere; quer se fazer nosso Rei, e se deita num presépio e nasce de uma pobre virgem que apenas tem com que lhe envolver. Deveria ter por mãe a uma rainha, e por berço um deslumbrante palácio- sem dúvida vive como um mendigo. Não é, na verdade, assombroso no seu aspecto pessoal? Por isso precisamos aprender abrir os olhos, como os pastores, e julgar não segundo a aparência exterior, senão segundo as palavras que foram ditas sobre essa criancinha. Devo dizer, pois: Considero santos a todos os crentes, e me considero um verdadeiro santo a mim mesmo, não por minha própria conduta irrepreensível, senão por causa do batismo, do sacramento da santa ceia, da palavra de Deus, e de meu Senhor Jesus Cristo em quem eu creio.

Então terás achado a definição correta. Se observo a mim mesmo, sem batismo, santa ceia e a palavra, não vejo mais que pecado e injustiça, o diabo em pessoa que me atormenta sem cessar. E se os observo a todos vós desprovidos da santa ceia, do batismo e da palavra divina, não vejo em vós santidade alguma. Ainda que estais sentados no templo ouvindo a palavra de Deus e orando, não vos fica nada de santidade se descontamos a palavra e os sacramentos.
Martinho Lutero

biografia-de-martinho-lutero-620x300Martinho Lutero, em alemão: Martin Luther (Eisleben, 10 de novembro de 1483 — Eisleben, 18 de fevereiro de 1546), foi um monge agostiniano e professor de teologia germânico que tornou-se uma das figuras centrais da Reforma Protestante. Levantou-se veementemente contra diversos dogmas do catolicismo romano, contestando sobretudo a doutrina de que o perdão de Deus poderia ser adquirido pelo comércio das indulgências.

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