Lidando com a fraqueza do irmão na fé – João Calvino

“Ora, quanto ao que está enfermo na fé, recebei-o, não em contendas sobre dúvidas.” [Romanos 14:1]

“…1. Acolhei ao que é débil na fé. O apóstolo se transpõe para um preceito particularmente indispensável para a instrução da Igreja.

Aqueles que atingem os cumes do conhecimento da doutrina cristã devem acomodar-se aos menos experientes, envidando todos seus esforços para que as fraquezas de tais pessoas sejam supridas. Alguns dentre o povo de Deus são mais frágeis que outros, os quais, se não forem tratados com grande ternura e paciência, se desanimam e finalmente desertam da religião. É provável que tal tenha sido o caso naquela época em particular, pois as igrejas eram compostas tanto de judeus como de gentios. Alguns haviam vivido por muito tempo sob o regime dos ritos da lei mosaica e se nutrindo deles desde a tenra idade; por isso, renunciá-los não era algo fácil. Outros, contudo, jamais haviam aprendido tais coisas, e por isso recusavam sujeitar-se a tal jugo, porquanto não tinham nenhuma afinidade com tais costumes.¹

Os homens são natural e demasiadamente inclinados a deslizar de uma diferença de opinião para uma disputa acirrada ou controvérsia. O apóstolo, pois, mostra como os que mantêm opiniões distintas podem viver juntos sem desavença. Portanto, aqui ele prescreve a melhor maneira de se fazer isso. Aqueles que possuem maior resistência devem empregá-la na assistência aos fracos; enquanto que aqueles que alcançaram maior progresso devem enfrentar com paciência os inexperientes.

Caso Deus nos faça mais fortes que outros, ele não nos faz robustos com o fim de oprimirmos os fracos. Nem tampouco é próprio da sabedoria cristã usar de insolência com o fim de menosprezar a alguém. Assim, pois, ele volve suas observações para os mais experientes e para os que já se acham confirmados. Estes estão em maior obrigação de auxiliar a seu próximo [fraco], visto que já receberam do Senhor maior medida de graça.

Não, porém, para [discutir] assuntos polêmicos.² Esta frase é incompleta, visto estar faltando o verbo necessário para completar o sentido. É evidente, contudo, que Paulo quis dizer simplesmente que os fracos não devem ser molestados com discussões desgastantes. Por isso é bom nos lembrarmos das hipóteses das quais ele então passa a tratar. Ainda quando muitos dos judeus se achavam presos às sombras da lei, eles estavam — o apóstolo o admite — errados em proceder assim. Não obstante, ele solicita que fossem perdoados por algum tempo, pois pressioná-los com demasiada severidade poderia equivaler o desfibramento de sua fé.³

Ele chama de assuntos polêmicos as questões que perturbam as mentes ainda não completamente estabelecidas, ou que ainda se digladiam com suasjoão calvino-001 dúvidas contundentes. Entretanto, podemos expandir esta frase, tentando eliminar dela algumas questões espinhosas e difíceis que têm gerado inquietação e confusão nas consciências frágeis, sem propiciar-lhes edificação alguma. Devemos, pois, considerar as questões que cada um pode suportar, acomodando nossa doutrina à capacidade individual.”…

Notas
¹ Alguns, como Haldane, têm achado falha nessa classificação, como nada havendo no capítulo que a contenha. Mas, como o objetivo do apóstolo, por toda a epístola, era conciliar judeus e gentios, há razão suficiente para considerá-los como os dois partidos aqui pretendidos. E como Chalmers com razão observa, é mais provável que os gentios fossem os desprezadores, visto que os judeus que, como Paulo, tinham vencido seus preconceitos, estavam sem dúvida dispostos a olhar com simpatia para seus irmãos.

² Non ad disceptationes qucestionum, μὴ εἰς διακρίσεις διαλογισμῶν; “non ad altercationes disceptationum — não para altercações de disputas” ou debates, Beza; “não para debates sobre questões duvidosas”, Doddridge; “não para envolver-se em disputas triviais”, Macknight. Ambas as palavras estão no plural; portanto não se pode dar à primeira o sentido de ‘julgar’, como faz Hodge; pois nesse caso ela estaria no singular. As palavras podem ser traduzidas “não para as soluções de dúvidas”. Um dos significados da primeira palavra, segundo Hesychius, é διάλυσις — desamarrar, liberar, dissolver; e para a última, vejam-se Lucas 24.38 e 1 Timóteo 2.8.

³ As observações de Scott sobre este versículo são notáveis e apropriadas: “Não obstante”, diz ele, “a autoridade com que Cristo revestiu seus apóstolos, e a infalibilidade com que enunciaram sua doutrina à humanidade, prevaleceram diferenças de opinião mesmo entre os cristãos reais; nem Paulo, com sua expressa decisão e ordem, tentou pôr-lhes um ponto final.

João Calvino – Comentários em Romanos 14
Biblioteca João Calvino – Comentários de João Calvino

 João CalvinoJoão Calvino (1509 – 1564) é considerado um dos maiores representantes da Reforma Protestante do século XVI, como ficou conhecido o movimento de reação aos abusos da Igreja Católica Romana à época. Calvino foi o responsável por sistematizar o protestantismo reformado através das Institutas da Religião Cristã, sua principal obra teológica, cujo objetivo era servir de instrução para a formação do cristão.

Lidando com a fraqueza do irmão na fé – João Calvino
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